Extensão da memória

Thursday, August 10, 2006

Um livro aberto

Recentemente tenho ouvido muito sobre pessoas que “bisbilhotam” no Orkut dos outros. Entram, lêem os scraps, vêem as fotos, descobrem tipo de humor ou o estilo de se vestir (!?) etc. Dentre os “visitados”, a maioria se sente incomodada, alguns se sentem ofendidos, ninguém permanece indiferente. Comportamentos mudam: informações antes mostradas são retiradas, scraps são apagados diariamente, mensagens de repreensão são deixadas aos curiosos e bisbilhoteiros. E não se trata aqui da preocupação com segurança: é menos medo de ser seqüestrado e mais incômodo em ser observado.
Quem está errado? “Eles”, os bisbilhoteiros, voyeuristas que não respeitam a privacidade alheia? Ou nós mesmos ao reclamar privacidade depois de ter aberto mão dela?
O que precisa ser considerado em relação à questão é nossa dificuldade em entender o Orkut como um canal de comunicação público. E público aqui não quer dizer que este pertença ao Estado, como as escolas públicas, as ruas e as praças. De fato, a propriedade sobre o Orkut é privada: ele pertence a uma empresa, a nova gigante da informática Google. No entanto, embora de propriedade privada, o sistema é público no que concerne à circulação de informações.
Por circulação pública entende-se que as informações estão “abertas” ou “disponíveis” para virtualmente todas as pessoas. O conteúdo de tais sistemas pode ser acessado por qualquer um; não há, em tais sistemas, a possibilidade do emissor da comunicação restringir seus receptores apenas àqueles que deseja. Ainda que sejam necessários recursos técnicos e/ou habilidades específicas para se tornar receptor de tais informações, estas são limitações contingenciais e fora do controle do emissor.
Sistemas de circulação pública são os canais de rádio AM e FM, os jornais, os canais de TV, as salas de chat e a maior parte dos websites da Internet. Mesmo canais ditos “fechados” quando exigem pagamento ainda devem ser considerados públicos. O fato de termos que pagar por uma assinatura de TV, um exemplar de jornal ou uma senha para acessar websites não os torna de circulação privada. O sistema permanece disponível para os que possam pagar (assim como no fato da TV aberta estar disponível apenas aos que possuem aparelho receptor). Assim, publicar significa difundir um conteúdo por um sistema em que a informação circule publicamente.
Do outro lado da questão estão os sistemas de circulação privada. Em tais sistemas, a informação não está disponível para qualquer pessoa, mas para indivíduos ou grupos selecionados pelo emissor. Mais que ter os recursos técnicos e as habilidades necessárias para a recepção, nos sistemas privados devemos ter sido escolhidos pelo emissor. No caso dos sistemas privados, a seleção do receptor é não só possível como faz parte das suas aplicações: é por sistemas privados que são transmitidas informações de interesse particular a uma única pessoa ou segredos de todo tipo.
São típicos sistemas de circulação privada a rede telefônica (convencional ou celular), as cartas e telegramas enviados pelos Correios, os comunicadores instantâneos (ICQ, MSN etc) e os e-mails. Característica de tal condição privada é a ilegalidade de grampos telefônicos ou a violação de correspondência quando não autorizada pela Justiça.
Tal classificação era muito fácil até uns anos atrás. Com o aparecimento das “novas tecnologias”, tal divisão começa a esmaecer em uma fronteira pouco nítida. E enquanto se torna mais difícil classificar os novos meios de comunicação, torna-se também mais confuso o uso que damos a eles. De tal confusão talvez venha boa parte dos problemas com o Orkut.
Nos “Termos de Serviço” do Orkut – o contrato para utilização do sistema – não há nenhuma caracterização explícita e clara sobre a natureza do sistema quanto à circulação das informações. Talvez por desconhecimento daqueles que redigiram o documento ou por inexistência de problemas dessa natureza nas tecnologias antigas, não há em tal contrato uma afirmação explícita de que “este serviço de comunicação é de circulação pública”. No entanto, um olhar mais atento ao texto do contrato permite encontrar diversas vezes o verbo “publicar” quando se refere a conteúdos colocados nas páginas pessoais. Em outras palavras, devemos ter em mente que o Orkut é um sistema de comunicação pública (onde a informação circula publicamente). E apertamos um botão declarando aceitar tal condição – ou não estaríamos lá.
Publicamos nossos dados, idéias, desejos, preferências etc. E quando o “público” (nossa “audiência”) se mostra, nos retraímos. Qual a razão de tal constrangimento? Por que nos sentimos invadidos ao sabermos que pessoas “bisbilhotam” em nossa página do Orkut? É correto se sentir assim?
A visibilidade é condição característica das pessoas envolvidas em sistemas de circulação públicos. Todos se expõe voluntariamente aos olhos dos outros. Ainda assim, ninguém espera que um jornalista se sinta incomodado com milhares de pessoas lendo seus textos em jornais diários; nenhum ator se sente invadido ao ser visto nas telas ou nos palcos.
No entanto, com raras exceções, o jornalista e o ator se sentiriam incomodados se o conteúdo publicado dissesse respeito à sua vida particular (ou aquilo se sugestivamente chamamos de vida privada). Em outras palavras, mesmo pessoas acostumadas à exposição na mídia não aceitam que conteúdos privados circulem em sistemas públicos. Geralmente tais pessoas guardam para si e para os seus a sua vida privada. Rompendo tais limites e tornando público o lado privado de certas pessoas estão os papparazzi e os jornalistas de fofocas. São eles que trazem a público, contra a vontade de seus retratados, o que deveria permanecer privado.
Mas é esse o caso dos bisbilhoteiros do Orkut? Eles quebram alguma regra de conduta ao olhar aquilo que tornamos público? De fato, não.
Nossa privacidade não é assaltada. Não somos forçados a declarar os dados que estão em nosso perfil. Nenhum “papparazzo” nos pega desprevenido e descobre coisas secretas de nossa vida. Preenchemos voluntariamente os dados que compõem o perfil, entramos voluntariamente em comunidades que manifestam nosso amor ou nosso ódio, mostrando algo a mais que um mero formulário tem condições. Alguns fatos de nossa vida privada se tornam públicos não por sermos vítimas de papparazzi, mas por termos publicado nós mesmos tais informações.
E há que se considerar ainda se tais informações tornadas públicas são de fato a causa do constrangimento. Nem todos os que se sentem constrangidos diante da “bisbilhotice” alheia o fazem por algum dado em seu perfil: nem sempre declaram a verdadeira idade ou a opção religiosa estigmatizada. Nem todos manifestam serem racistas ou gostarem de músicas cafonas. Aliás, o mais comum é que os vínculos sejam tênues e pouco representativos (“Abro a geladeira para pensar”, “Apertava a campainha e corria”, etc). Não expomos nossas entranhas, mas apenas pedaços pouco importantes de pele.
Talvez – e trata-se apenas de especulação – o problema resida, em parte, no fato do Orkut revelar nossa heterogeneidade. Tornar público nosso perfil significa revelar e misturar as várias facetas que compõem nossa esquizofrenia cotidiana. Misturamos o “eu” do ambiente de trabalho com o “eu” da escola ou faculdade com o “eu” dos amigos de infância com o “eu” do bar que freqüentamos etc. Nossos relacionamentos e vínculos interpessoais – escancarados nos scraps – se embaralham; os diversos papéis que desempenhamos no dia-a-dia se revelam como não sendo o nosso “eu” mais genuíno, mas única e tão somente personagens. Ratificando: isso é apenas uma hipótese.
Além disso, o que parece ser a maior mudança em relação ao Orkut não é tanto o que transparecemos, mas o transparecer em si. É mais uma manifestação do que dizia McLuhan: o conteúdo parece ser o menos importante – a transformação ocasionada pelo meio é que realmente merece atenção. Não nos sentimos constrangidos por mostrar isso ou aquilo, mas por termos nos tornado objetos tão visíveis.
É comum ouvir de artistas ou políticos menções a sua condição de “pessoa pública”. E talvez seja essa a condição que nos atormenta. Não temos experiência em sermos públicos e a visibilidade que adquirimos começa a incomodar. Mesmo não tendo o que esconder ou do que ficar envergonhados, nos incomodamos com a condição passiva de ser observado. É provável que a mais auto-confiante das amebas se sinta enrubescida sob o microscópio.
Sempre fomos “vistos” por nossos amigos e familiares. E controlávamos tal visibilidade reclamando o direito à privacidade. Ao ingressar no Orkut, abrimos mão dessa privacidade para tudo o que publicamos. Somos vistos por qualquer um e nos queixamos de tal situação. Guardadas as proporções – e neste caso as proporções não invalidam o argumento -, é como se colocássemos no ar um canal de TV, mas esperássemos que apenas nossos amigos o assistissem.
A expressão “minha vida é um livro aberto” ganhou novas dimensões. O livro saiu do prelo, está escancarado, disponível em todas as bibliotecas, à mercê de máquinas fotocopiadoras. Azar de quem não quiser se tornar best-seller.


Sobre os conceitos de comunicação pública e privada, vale a pena dar uma olhada em THOMPSON, John. A mídia e modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis, Ed. Vozes, 1998. Vale a pena também olhar o capítulo 3 e as discussões sobre Região Frontal e Região de Fundo. Também em MATTELART, Armand. Comunicação-Mundo: história das idéias e estratégias. Petrópolis, Ed. Vozes, 1994. Neste último, dar atenção à questão do Cabinet-Noir (1° capítulo).
A questão também se liga ao Panóptico, mencionado em FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir. Petrópolis, Ed. Vozes, 2006 e em MACHADO, Arlindo. Máquina e imaginário. São Paulo, EDUSP, 2001. Todos os livros foram publicados – podem ser lidos por qualquer um.

Wednesday, August 09, 2006

All you need is love....(Pan..paran..raran...)

Passeando pelo Orkut dos outros (tem coisa melhor que voyeurismo?), tenho notado uma tendência interessante. Logo na página de apresentação, muitos colocam o apelo: "Não me adicione sem deixar um scrap" ou qualquer coisa do tipo. Em outras palavras, se quer se dizer meu camarada, me adule um pouquinho antes....

O que se passa?Falta de carinho?Por que a necessidade de umas palavras singelas e com problemas de ortografia?
Vou correndo lá no meu Orkut alterar a apresentação do meu perfil.......Pode me adicionar SEM deixar um scrap: prefiro fingir que sou seu amigo a ter que ler um texto mal escrito e sem graça.

Isso me lembra quando entrei no Orkut (já um pouco tarde, é verdade...será que não sou popular?). Algumas pessoas me brindavam com testemunhos entre o barroco e o romântico, enaltecendo todas as minhas (muitas) virtudes e esquecendo meus 2 ou 3 defeitos. Depois, pessoalmente, me cobravam: "Agora veja se deixa um testemunho pra mim também, tá?"; algo do tipo "eu coço suas costas, você coça as minhas".

Mundo estranho esse....




Um pensamento para a semana: "A vida é muito curta. O Chile é muito comprido."