Extensão da memória

Tuesday, December 19, 2006

A coisa certa...pelas razões erradas!

A coisa certa…pelas razões erradas!

Fiquei feliz nesta terça quando vi que o Supremo Tribunal Federal tinha derrubado o aumento dos congressistas. Durante todo o final de semana ouvi e vi na TV, no rádio e na Internet a mobilização popular em torno dessa questão. Eram dezenas de reportagens - algumas sérias, outras típicas da TV – conclamando o povo para protestar contra o aumento.
O esforço deu resultado. Pessoas foram para as ruas com aquele misto de ódio e patriotismo de botequim. Fizeram passeatas, se acorrentaram a prédios públicos, mostraram a bunda em frente ao congresso etc. A coesão com que as pessoas se juntaram por algo comum foi tão grande que me fez lembrar a época de Copa do Mundo.
Quando o Supremo cortou o barato dos deputados e senadores, foi aquela catarse inebriante. No entanto, embora tenha curtido muito a rasteira neles, fiquei com um gosto amargo na boca. Embora a coisa certa tenha ocorrido, fico com a sensação de que foi pelos motivos errados. Por que é que nos levantamos contra o aumento dos deputados e senadores? Por pura inveja.
A opinião pública se mobilizou por algo que acontecia lá em Brasília por um motivo bastante errado. Em uma democracia madura, as pessoas se mobilizam, discutem e se manifestam para participar ativamente das tomadas de decisões. A mobilização a que assistimos não ocorreu por isso. Ocorreu por aquele sentimento de revolta que nos faz ficar furiosos ao ver alguém se dando bem injustamente.
Nos mobilizamos não por achar que tal medida (o impedimento do aumento) era boa para o país, mas por achar injusto que eles tenham o aumento e nós não. Basta ver a argumentação das pessoas (a tal “opinião pública”). Nos mexemos não por um sentimento de participação democrática ou um interesse legítimo na forma como as questões públicas são conduzidas. Não pensávamos em aprovar leis que fossem mais justas para a sociedade ou para a nação.
Nós nos mexemos simplesmente por achar uma afronta que pessoas que trabalham de terça a quinta, recebem suborno pelo seu voto e gozam de uma inadequada imunidade parlamentar recebam mais essa mamata. Não questionamos a semana de três dias, as absolvições (lembra da deputada dançando?) ou o olhar diferenciado da Justiça – tudo isso, convenhamos, tão ou mais nocivo ao país quanto o aumento. O que questionamos é o fato deles ainda pedirem (e terem poder para se dar) um aumento de 90%.
E não acredito que o aumento de 90% tenho sido considerado absurdo por agredir a economia do país. Embora alguns comentaristas da TV tenham mencionado, não vi o povão se preocupando com o efeito cascata (aumento dos deputados estaduais e dos vereadores) e com o rombo que este causaria aos cofres públicos. A queixa sempre era sobre a impossibilidade de ter um aumento igual. “Se eu que sou honesto não tenho um aumento de 90%, por que eles (que são políticos) vão ter?” Ficou uma sensação de que as pessoas fizeram o que fizeram não por achar a melhor decisão para o país, mas por achar que “aí eles já tão querendo demais”. Fizemos não por ser certo, mas por despeito.

P: Tudo bem, mas qual é o problema? Não fizemos o certo de toda forma?

R: Sim. No entanto, ao fazer a coisa certa pelas razões erradas, não participamos do processo democrático da forma correta. Não discutimos todas (ou pelo menos parte dos projetos de lei que tramitam no Congresso), não sabemos como o deputado em quem votamos atuou nas questões que nos dizem respeito diretamente. Na mesma semana em que a questão do aumento ganhou a mídia e as conversas informais (Santa Agenda Setting!), um outro projeto tramitou para tornar a CPMF definitiva. Com muito menos destaque, o projeto vai tirar o P da CPMF e torná-la um imposto a mais. E para sempre. Deveríamos discutir publicamente isso.
Deveríamos discutir publicamente as pesquisas com células-tronco, a concessão de canais de rádio e TV, a legislação de patentes de medicamentos etc. Mas viramos as costas com para tudo isso. Só acordamos quando soubemos que aqueles deputados vão se dar um aumento de 90%. Talvez tenhamos a ilusão de estar participando do processo democrático quando estamos, de fato, dando um palpite por ano. Ao agir assim, atrofiamos nossa capacidade de agir, de pressionar, de nos manifestar. Ficamos com a falsa sensação de estar com as rédeas na mão quando somos, de fato, conduzidos por um caminho que nos desobrigamos de escolher.



Camarada Aldo...
O presidente da Câmara, Aldo Rebelo, se revelou ao declarar publicamente que a decisão da mesa (os “cartolas” que entraram em acordo para aprovar o aumento) seria mantida, a despeito das manifestações por todo lado. Aldo, um motivo de orgulho para o Partido Comunista, mostrou que aprendeu muito com as experiências comunistas ao longo da história. A decisão foi tomada por meia dúzia e não será revogada, por mais que o povo não aceite.
Em outro momento de extrema sensatez, afirmou que o aumento seria mantido, mas em troca algumas mordomias seriam cortadas. Em seu momento “estupra, mas não mata”, o orgulho do PC do B assumiu que existem benefícios além da conta para os congressistas. E tais benefícios seriam cortados para equilibrar as coisas depois do aumento. Por que só discutir o corte das mordomias depois do aumento? Se os benefícios são justos, não se deveria aceitar discuti-los. Se são injustos, deveriam discuti-los com ou sem aumento.

Camarada Lula...
Vi o Lula na TV. Ela estava dizendo que preferia não se manifestar sobre o aumento dos deputados por respeitar a autonomia entre os três poderes. Para ele, fazer afirmações sobre decisões da Câmara significa desrespeitar o Legislativo.
Bem, se minha memória política não se engana (e nós sabemos que a memória política é bem curtinha, dura só a cobertura de um escândalo desses pela mídia), o então deputado Lula (Legislativo) nunca se furtou o prazer de criticar o então presidente (Executivo).
Aliás, uma das vantagens em se ter a divisão não é essa: um vigiar o trabalho do outro? Por que o tão criticado Lula evita atacar uma questão tão indefensável? Será que os milhões que votaram em Lula não merecem que ele represente sua (dos eleitores) opinião? Será que o Presidente da República tem medo de ofender o Congresso e perder a governabilidade, mesmo com a enxurrada de congressistas do PT somados aos das alianças políticas? Ou será que Lula não pode se manifestar por outros motivos?
Melhor que um mensalão esporádico é um mensalão fixo, como uma mesada.
Aliás, se o Lula considera a simples expressão de sua opinião um desrespeito ao Legislativo, o que dirá ele sobre a decisão do Supremo? Não teria o Supremo desrespeitado a decisão do Legislativo ao considerar ilegal o aumento? O que será que o Lula vai dizer sobre o Judiciário? Ah! Me esqueci: ele não se manifesta sobre decisões dos outros poderes....

Apesar de tudo, ainda sou otimista em relação à coisa toda. Ainda acho que nossas dificuldades são em função de sermos uma democracia jovem (os EUA tem mais de 200 anos e elegeram o Bush!!!). As coisas estão melhores hoje do que 10 anos atrás. E ficarão melhores a cada eleição.
Mais uma vez, fiquei admirado com a atuação do Gabeira. Apesar de ser carioca e ter voz de maconheiro, ele tem meu voto para qualquer coisa a que se candidate.
E gostei também da atuação da imprensa. Apesar dos problemas (e eles existem de fato), a imprensa cumpriu sua função (Ave, Laswell!) de vigilância do meio. Dá pra melhorar? Sim, dá. Dá para dar um pouco mais de atenção e fazer um pouco mais de estardalhaço nos momentos certos (como diria Laswell, “se o estímulo estiver abaixo do limiar, nada acontece”). Mas o trabalho da imprensa hoje é muito melhor que o de 20 anos atrás.
Coisas de democracia jovem.



PS: fiquei comovido com a vitória do Internacional. Adorei ver os jogadores desfilando por Porto Alegre, em meio à torcida colorada. Até os caminhões dos bombeiros foram pintados de vermelho para recebê-los!